terça-feira, 18 de dezembro de 2007

A vida em tempos da Coisa

A miúdita deixa-me preocupada.
No outro dia perguntou-me sobre alguém: mas também é bipolar como nós?
Agora, esta coisa do amor à Coisa, que eu desconhecia...
Afinal a miúdita é uma infiltrada?
Eu própria, depois de longos sofrimentos a renegar e a insurgir-me contra a Coisa, atravessei um período em que invocava as minhas diferentes religiões sem sucesso, passando agora a hibernar uma semana antes da Coisa assumir o seu auge.
Nesta época, a minha vida também não é fácil. Embora fechada em casa, os problemas perseguem-me. Está um frio de rachar. O trânsito está que não se pode. Não se pode ir comer a lado nenhum porque os restaurantes estão cheios. Não se pode marcar nada com ninguém porque todos estão na Coisa e vão passar a Coisa para a terra do leitinho com mel. Se precisamos de comprar uma coisita de nada, temos de enfrentar uma fila enorme de gente a comprar coisas para a Coisa que querem embrulhar em papel de Coisa. E tudo, e tudo, e tudo...
Não, minha krida miúdita, não somos nós que somos bipolares, a vida é que não nos ajuda.
A Patroa

3 comentários:

miudita disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
miudita disse...

Patroa preocupa-me. Nós são somos bipolares, é certo. Nunca disse isso, nem sei o que isso é. A minha condição de Miudita não me dá estudos para destrinçar essas maleitas. Somos é, com muito orgulho, Doentes da Cabeça, que é muito diferente. E como Doentes da Cabeça podemos hoje gostar da Coisa como amanhã negar a existência do Coiso. É simples. Como eu, que sou uma miúda simples. Desejo à MINHA QUERIDA Patroa uma boa hibernação. Nós, as Criaditas, temos saudades dela

Anónimo disse...

Nada a Dizer

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio. Que é que eu posso escrever. Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espirito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras. Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade. Simplesmente não há palavras. O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes. Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.

Clarice Lispector